PORTO ALEGRE INVISÍVEL
- Alekxis Prinz
- 27 de mai. de 2023
- 4 min de leitura
"A caverna que você tem medo de entrar guarda o tesouro que você procura" (Joseph Campbell).
A bicicleta percorre silenciosamente as ruas do centro histórico de Porto Alegre. Rodrigo para aqui e ali, sempre que necessita deixar sua carga de periódicos em algum endereço das ruas com nomes de figuras ilustres e poderosas do passado.
Os dedos rosados da Aurora já estão despontando e indicando o início de um novo dia de labuta para os cidadãos de bem. Porém, neste momento, as poucas almas que Rodrigo percebe em seu trajeto são os moradores de rua, encolhidos em seus cobertores rotos ou catando no lixo qualquer coisa que lhe renda algu
ns trocados para sobreviver ao novo dia.
Rodrigo sabe que em breve a cidade real acordará e as necessidades materiais e racionais da multidão assumirão o controle. Toda a magia da cidade será congelada, tornando-se praticamente imperceptível para a maioria dos passantes apesar de continuar ali presente: paradoxalmente viva e morta, sólida e efêmera, mundana e sagrada. Ele gosta desta aura de segredos revelados, de mitos que convivem com a realidade e que se misturam formando a base da história e da cultura de um povo.
Ao chegar na Praça da Matriz, o lugar mais alto e estratégico da cidadela histórica, observa o Palácio Piratini e a Catedral Metropolitana lado a lado. Para por alguns instantes a sua bicicleta para ganhar fôlego da subida íngrem
e de quem vem pela Rua General Câmara, a famosa Rua da Ladeira. Ali, desfruta de alguns momentos observando coisas que geralmente passam despercebidas para a maioria, mas que são o reforço místico da realidade. Primeiro avista o obelisco, postado no centro da praça, símbolo fálico milenar da ligação da terra com um deus superior. Indicando oficialmente o marco zero da cidade, mas de uma forma muito mais sutil e inconsciente, o centro do mundo conhecido para aqueles que vivem na metrópole. O obelisco reverencia o patrono da cidade - Júlio de Castilhos. Mitologicamente falando, o grande pai enviado pela divindade para guiar os gaúchos e porto alegrenses, através da razão positivista. Uma ironia ou paradoxo?
Olha ao redor da praça, e percebe nitidamente os prédios dos três poderes legais, símbolos da autoridade mundana ao lado da Catedral, símbolo do poder espiritual. Um não convive sem o outro e ambos reforçam o seu poder mútuo através de um nível inconsciente. Para isso, basta apenas observar mais atentament
e os sinais. Eles estão lá! Como as oito cabeças indígenas encravadas na base da estrutura da Cripta da Catedral. Elas suportam pacientemente subjugadas, todo o peso material e imaterial da igreja. Da mesma forma, no outro lado da rua, a estátua de Sepé Tiaraju, em frente à Assembleia Legislativa, transforma o inimigo abatido em herói imortalizado se apropriando da famosa frase: “Essa terra tem dono”. É o mito legitimando uma história feita pelos vencedores.
Refeito da subida e satisfeito pelas reflexões sobre o invisível coletivo, Rodrigo segue pela Rua Duque de Caxias, agora descendo novamente em direção aos quartéis. Porto Alegre é uma cidade nascida sob o signo de Áries, portanto, fiel a sua história guerreira. A figura de Marte paira invisível nesta parte da cidade e só é sobrepujado pelo seu parceiro Mercúrio, um dos raros exemplos de deus trabalhador e que está materializado em um sem número de estátuas, imagens e emblemas espalhados por toda a região central de Porto Alegre. Rodrigo avista alguns desses símbolos que vão desde a rua Caldas Junior, passando pelo Banco Safra, Clube do Comércio e chegando até a estação rodoviária.
À medida que o dia vai avançando, a atuação multifacetada e onipresente de Hermes é sentida por Rodrigo no ir e vir das pessoas pela Rua da Praia, nas conversas discretas pelas esquinas, nos anúncios feitos aos berros pelos comerciantes e camelôs e na agilidade com que os carregadores de mercadorias driblam os transeu
ntes. Mercúrio está presente até mesmo nos inúmeros golpes e truques aplicados nos mais desavisados, afinal ele também é o deus dos ladrões e dos farsantes.
Seguindo seu caminho em direção ao Mercado público, pode perceber a transformação do deus greco-romano em uma entidade mais popular e de ascendência africana: o Bará. Mudam os nomes, mas não a essência. Afinal, Bará também é o senhor dos caminhos, do comércio, das trocas e do movimento. O Mercado Público foi consagrado a ele pelos escravos africanos, os verdadeiros construtores do prédio e desde sempre foi um dos centros espirituais que permitiram o crescimento das religiões de matriz africana na cidade. Assim, sempre que Rodrigo passa pelo ponto central do Mercado, faz questão de deixar uma bala ou uma moedinha sobre a mandala com sete chaves encravada no piso. Sempre ajuda a abrir os seus caminhos. Aliás, são muitos os caminhos que levam a Porto Alegre. Os muros protetores de outrora, que controlavam a entrada e saída da cidadela se foram com o crescimento urbano e populacional. Em seu lugar, existem dois guardiões a velar pela cidade: o Laçador na entrada norte de Porto Alegre e a Mãe Oxum, deusa dos rios e águas doces em Ipanema, na parte sul da cidade. Dois lados míticos de uma mesm
a moeda, ou melhor, de uma mesma cidade.
Nesse caleidoscópio multicultural e mitológico da capital rio-grandense, o sagrado e o profano se misturam, mostrando que nem tudo o que é real é verdadeiro e que o invisível também pode se tornar palpável a medida que nossa consciência se expande.
Alekxis Prinz - 25.05.2023
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